SEJA BEM-VINDO!

BEM-VINDO AO MUNDO DA ESCRITA!

EIS AQUI O ESPAÇO VIRTUAL ONDE AS PALAVRAS BUSCAM SE LIBERTAR DO LIMBO.



________________________________________________________

CAROS AMIGOS,

A CARA DO BLOG MUDOU, ENTRETANTO A AVENTURA DE ESCREVER CONTINUA VIVA.

ESTAMOS AQUI À ESPERA DE QUE VOCÊS NOS LEIAM E, SE POSSÍVEL, DEIXEM UM COMENTÁRIO.

ABRAÇO FRATERNO.

(HOMERO DE LINHARES)


_________________________________________________________

AVISO AOS INTERNAUTAS,

A PARTIR DE HOJE, ESTOU AQUI COM HOMERO DE LINHARES, REVEZANDO NA ARTE DA PALAVRA.

GRANDE ABRAÇO.


(DAVID BELLMOND)







segunda-feira, 12 de outubro de 2009

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 40 E 41)


A FILA

A fila se estica,
Enviesa, se espreme.
Tem forma de esse,
De dáblio, de ene.
Tem corpo colorido:
Vermelho de cólera,
Amarelo de cansaço,
Cinza de demora
Ou branco seria?

A fila tem mãos
Que escrevem poesia,
Que acenam, se coçam,
Que se cruzam, endossam.
A fila tem braços
Sem mãos, sem noção
Da nobre missão
Do dedo polegar,
Autógrafo de analfabeto.

A fila se estica,
Os enfileirados se amassam,
Discutem política
E as horas passam.
Quem anda entediado
Com a rotina tranqüila
Acha tudo engraçado
E quer entrar na fila.

Lá na frente um maroto
Tenta se adiantar,
Mas a fila protesta
E promete se rebelar.
Soam coros indecentes
Ao vagaroso atendente.
A fila tem aroma
De suor, de colônia,
De naftalina.
Finda o expediente
E a fila não termina.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 40 e 41.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 42)


QUARTO DE TREVAS

Um olhar enevoado
No rosto sério e calado
De um anjo torto e sem asas
Ilumina a escuridão
Do quarto e da imensidão
De um poeta estarrecido.

E o poeta vela a sombra
Envolta no rosto dela
Sem saber quais os sintomas
Que o obrigam a olhar pra ela.

O quarto preso no abismo
Mas lá fora o crepúsculo é pior.
Tem sol, mas não tem o resquício
De luz que há no olhar dela.

A face não envelhece,
Há uma infância ainda em seu rosto
Mas tantos anos já passaram
Na insônia nupcial.
No entanto o poeta se veste
E penetra mais nas trevas
Da rua que não é de trevas.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 42.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 43)


DEGREDADA

Degredada
Filha de Eva
Gemendo e chorando
No meio das trevas.

Humilhada
Filha de Maria
Amamentando os filhos
De barriga vazia.

Abandonada
Filha de Penélope
Tecendo solidão
Para sua própria veste.

Injustiçada
Filha de Joana
Defendendo os santos
Morrendo profana.

Encarcerada
Filha de Anastácia
Sofrendo horrores
Atrás da amordaça.

Esperançada
Filha de Teresa
Armando-se contra o mundo
Com o poder de sua reza.
Bem-aventuradas
Filhas de Maria
Alfabetizando os filhos
De barriga vazia.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 43.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 44)


O POETA SOBREVOA A CIDADE

Segundo o censo do IBGE
Realizado em 1996,
Linhares possui 125.297 habitantes
E 1 poeta que há 30 anos chora de saudades
Longe dos arredores da cidade.
63.013 homens e 62.284 mulheres
Habitam Linhares
E 1 poeta longe com seu banjo,
Porque o poeta é como anjo
Que não tem seu sexo determinado,
Mas tem asas enormes e esquisitas.
E o poeta sobrevoa Linhares,
Anunciando o bem e o mal
Sobre a cidade natal,
Sem quedar-se em discurso maniqueísta.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 44.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 45)


SONHO FRAGMENTADO

E eu que no sonho anterior
Sonhava voar sobre as casas,
Que tolice a minha agora acreditar
Ter asas,
Subir sobre os edifícios
E me atirar no abismo,
Me espatifar no chão.

Fragmentos de sonhos
Espalhados no chão,
Mas não são utopias,
São vísceras, coração
Que sucumbiu à banalidade
Da lei da gravidade.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 45.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 46)


POEMA MENOR SOBRE A IMBECILIDADE

Era um homem
E era um rio.
A ponte sob o homem que passava sobre o rio,
Ou seria o rio sob o homem que passava sobre a ponte?
Um homem sobre a ponte olhando o rio
Propenso à loucura e ao vazio.

O vazio do homem
Por cima da ponte
Buscando o prazer e a fonte
Da felicidade perdida no horizonte
E de tanto pensar
Se joga no rio.

Não convém aqui reproduzir
A onomatopéia do corpo do homem
Chocando-se com as águas.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 46.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 47)


MARIA BOA-VIDA

Maria Boa-vida de bunda arrebitada
Quer viver sua vida sem conquistar nada.
Conquistar, que isso seja sem luta travada,
Maria Boa-vida não quer lutar por nada.

Maria Boa-vida de cara maquiada
Quer se ascender na vida sem mão calejada.
As mãos têm outro fim pra Maria Boa-vida
Que não seja plantar sua própria comida.

Pra Maria Boa-vida, colher é o importante,
Ela colhe um pouco a cada novo amante.
Maria Boa-vida, soldadeira, ninfeta,
Tudo que faz na vida é tocar clarineta.

Tocar, que isso não tenha que cansar sua beleza,
Pois Maria Boa-vida só toca por defesa.
Defender-se da sina de tocar das mulheres
Que não são boas-vidas e não têm o que querem.

Maria Boa-vida só tem na sua agenda
Horário pra ancião dono de boa renda.
Maria Boa-vida, de flacidez precoce,
Tanto cedeu na vida que morreu sem ter posse.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 47.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 48)




A ROSA

Dentro do teu olho raso
Na tua reza parnasa,
De riso desconcertado,
Há uma Rosa obesa.

Na rua em que cadencias
Teus rotos passos de homem,
A Rosa marcha no ritmo
Que rege a tua poesia

Na tua servidão rara
De regar a solitude
Com teus ritos de Romeu,
Uma Rosa te ampara.

No rumor da devoção
Do teu amor neo-romântico,
Uma Rosa ainda floresce
Nas rimas da tua canção.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 48.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 49)




ESPELHO PAR

Quando te contemplo, Orides,
Graficumana condição,
Perdôo, aceito minhas matizes,
Deslizes.
Me estranho, poeta
Não sou não.

Sua mesquinhez, sua graça
Viva, palavra
Reflexo do último sol.
Minha mesquinhez, minha fala
Opaca, sem fruto,
Sem flor, sem formosura,
Sem clarão.

Que flor brotar no peito
De quem canta,
Se o canto é ainda mais
Dor que a solitude?
Ilude-se a formiga
De que sua faina telúrica
É ainda mais cansativa e dolorosa
Que o canto da cigarra.
No primeiro canto o último labor.

Quem canta abre os pulmões,
Desentope o peito,
Escarnece e faz rarefeito
O ar de quem ama.
Quem tem espelho sabe do diabo
E conhece a imagem do seu criador,
Pois dentro do ser esconde-se o que é heterogêneo.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 49.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 50)


MIA SENHOR SEM NOME

Em quantos versos queres que eu te faça musa,
Sem pintar suas madeixas negras onduladas,
Escondendo a veneração exagerada
Que teu coração quer e teu corpo recusa?

Quanto tempo queres que eu espere calado,
Amada, amante, musa, ou nada disso...amiga?
Quantas noites queres ainda que eu siga
Negando a toda gente estar apaixonado?

Barganho, mia Senhor, por um único beijo
Meus versos ainda que me esqueças após
Distanciarem os meus lábios dos seus e o nós
Que me guiam a tais olhares e desejos.

Um beijo só e seu e eu me limitaria
A beijar teu vulto sem sequer te falar,
E até a morte minha iria eu te beijar
Apenas no universo da minha poesia.

Eu te condenaria ao mencionar teu nome,
Amor secreto, amor por mim desmerecido.
Ah! Eu seria um louco, um fraco, um bandido
Se eu revelasse ao mundo que se chamas...Fome

Fome ou sede (não sei qual é o mais correto)
De arrancar de mim esta vontade louca
De desvendar teu sonho. O que me dar em troca
Desta minha paixão, deste meu peito aberto?

Amemos em segredo ou deixe que eu te ame
Sem que ninguém perceba meu frágil amor,
Que assim nunca terás razão em mim pra dor
E jamais me dirás não, mia Senhor sem nome.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 50.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 51)


O HOMEM ELEVADO AO OCASO

Pensam que debruço-me à janela
Assistindo a vida alheia.
Debruço-me sobre o horizonte
Na espera de traduzir seus signos.
Os homens, pseudo-vidas,
Põem-se entre mim e o acaso.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 51.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 52)


PROSOPOPÉIA

Toca aqui na minha mão,
Vê quantos navios têm
Para atravessar o sertão,
Vê quantos guerreiros santos
Me levam a Jerusalém.

Olha bem na minha retina,
Vê quantos raios de sol
Beijam paisagens cristalinas,
Vê quantas rimas perfeitas
Enfeitam meu arrebol.

Contempla bem meu sorriso,
E quantos profundos lagos
Miram-me e eu Narciso
Afogo os remotos mares
Em troca de um mero afago.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 52.)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 53)


CANTIGA PARA OS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS
DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CU DO MUNDO

Era jovem a Genoveva
Quando o jactancioso
Poetinha Rubem Braga
Não era nome de lei.

Hoje a Genoveva vive
Sem ver que a vida alheia
É a veia da existência
Dos altos prédios erguidos
Nas mínimas avenidas
Da capital dos seus sonhos.

Vive a velha Genoveva
Entre atritos de gengivas
E dentes alternativos,
Contagem de níqueis provindos
Dos cidadãos inativos
Da cidade litorânea.

Ignora a Genoveva viúva
Que o sustento da sua velhice
Vem da gente analfabeta
Que transita despercebida
As ruas do município
Lá onde o vento faz a curva,
Projetado no cu do mundo.


(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 53.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 54 E 55)




HIEROGLIFOS ORAIS

Lugar comum,
Futuro nenhum.
Não mais me seduz
A palavra chavão
Corroída pelo uso,
Abuso e repetição
E dissonância.

O termo perfeito
Já ganhou trejeito
De expressão vulgar.
O cosseno a se equacionar
Entre as metáforas,
As divisões silábicas
Com novos teoremas.
O emprego do trema
No vetor do poema.

Latina maldição
Do verbo rotulado,
Mensagem sem expressão
Dos argumentos patéticos
Na luz dos neolíticos.
Bom dia! Como vai?
Qual seu partido político?
Qual seu filme predileto?
Que idade você tem?
Beabá, abecê, etcétera,
Blablablá, nhenhenhém.




O velho Aurélio, artefato
De alguma civilização perdida,
Nada ouve, nada vê, tudo olvida,
Nada traduz do país analfabeto,
Nem há recordações
De qualquer período aquém
Dos diálogos dissilábicos
E arte em out-door.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 54 e 55.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 56)




FOLHETIM AVULSO

O bondoso mocinho,
Bonitinho, bonzinho,
Sofre nas mãos do vilão
Durão, bonachão.

A bela donzela,
Síndrome de Cinderela,
Não cede à sedução
Do poderoso vilão.

Um dia o mocinho
Pobrezinho, bonzinho,
Descobre que é herdeiro
De uma fortuna em dinheiro.

A bela donzela,
Tão bela, tão bela,
Casa-se com o mocinho
Riquinho. bonzinho,

No fim da novela
O vilão se regenera
E recebe, então,
Do mocinho o perdão.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 56.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 57)


EFE...

Foi-se
E fez de outro infeliz
Sua fuga perfeita
Para futilidade,
Foice
Decepando minha fé
Num futuro perfeito,
Dito e feito,
Não sei mais sonhar direito,
Fiquei fraco,
Faminto,
Fatigado da luta,
F...
Não fui feito para dor,
Minha fé decepada
Me forçou outra vez
Voltar a ser feliz.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 57.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 58)


EVOLUTIVO

Dor vai
Dor vem
Darwin
Não me conven-
Ce de que o ín-
Dio sul-ame-
Ricano provém
Do macaco eu-
Ropeu narciso.
Símio esquizo-
Frênico ateu,
Dono do mar
E homem no pa-
Raíso.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 58.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 59 e 60)


CANTO A DESDÊMONA

Nada tenho de meu
Das viagens que fiz,
Nada trouxe dos mares
Que outrora velejei.
Tenho apenas o andor
E o corpo ferido
Pelo gume de espadas
De hordas que enfrentei.

Nada tenho que possa
Dar-te em troca do amor
Se tudo que possuo
É tudo que vivi
Lutando com Netuno,
Encantando sereias,
Fazendo meu escudo
Da minha cara feia.

Feia sim, por que não?
Se não sou erudito
Tal qual Hamlet travesso
Ou sábio como Platão.
Se quiser sobre mim
Posso tudo contar,
Esperando que assim
Você aprenda a me amar.

Posso te amar até
Que me corroa o ciúme
E eu te arranque a vida
Com a ira, com o gume
Da mesma espada fria
Usada nos combates,
Destronando reis maus
E apaixonados vates.

O demônio sou eu,
Não é quem me envenena.
Eu sou digno de morte,
Iago digno de pena.
O descobrir da verdade
Já tarde me condena.
Antes eu nunca soubesse
Que me amavas, Desdêmona.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 59 e 60.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 61 e 62)




EGOFOBIA
À minha professora da oitava série, Marisa Badauê

O medo da solidão
Ë maior que o da morte.
Morrerei uma só vez,
Sozinho estarei sempre
Deixando que o meu ego
Relute com imagens
Dialogando com miragens
Que às vezes lhe convém.

Temo adormecer
Assim abandonado
Para que eu não acorde
Conversando comigo.
Preciso de um amigo
Diferente do lobo
Que mora dentro de mim,
O qual não é um lobo mal
Mas é um lobo tal
Que me prende à incógnita
Da vida incognitável.

O medo da solidão
Mata antes de morrer.
É feito guilhotina,
É feito heroína
Que me invade as veias
E antecipa o fim,
Concedendo vida longa
Ao lobo dentro de mim.

Porém matarei o lobo
Que me subverte o coração,
Apunhalando o peito
Esquerdo e o esquartejando.
Assassinarei assim
A minha egofobia,
Ainda que em agonia
Tombe todo o meu ser
E eu morra abandonado
Nas mais só das solidões.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 61 e 62.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 63)


PEDRA DURA

Órgão mole
Em carne dura
Tanto bate
Até que gera
Toda a prole
Contra a cultura
Tanto fala
Pouco supura
O tumor da dita mole
Dita destra
Citada dura.

Água podre
E pão de usura
Cala a boca
E não tortura.
Alma mole
Pedra dura
Tanto encarna
A escultura
Quando escarna
Da mesura.
Alma mole
Em sepultura,
Ainda resiste
A alma dura

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 63.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 64)


CAPIXABANDO

Capixabas analfabetos
Capixabas sem teto
Capixabas analfabetos
Capixabas sem projetos
Capixabas analfabetos
Capixabas sem dialeto
Capixabas analfabetos
Capixabas obsoletos
Capixabas analfabetos
Capixabas nos guetos
Capixabas analfabetos
Capixabas sem afeto
Capixabas analfabetos.

Capixabas tristonhos
Capixabas risonhos
Capixabas medonhos
Capixabas, suponho,
São bichos enfadonhos
Disfarçando de sonho
O que lhes é ditado.
Capixabas amordaçados.

Migalhas do dia a dia
Navalha na hipocrisia
Mortalha todo dia
Politicalha e sangria
Batalha em demasia
Escangalha a utopia
Mas quase nunca porém
Entretanto, todavia,
Trabalha e confia.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 64.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 65 E 66)


BONS TEMPOS

Bons tempos em que a ladeira
Não tinha calçada e a gente
Tirava o barro das ruas
Para fazer casa de estuque.
O telhado eram folhas
De bananeira ou coqueiro.
Quando chovia lá dentro
Saíamos para o aguaceiro.
Voltávamos encharcados
Com gripe e nosso pai zangado
Nos punia com chicotes
Feitos de varas de goiaba.

Bons tempos em que o pão
Era repartido ao meio,
Manteiga escassa, leite não.
Ensopado de carne bovina
Era só no início do mês
E suco das laranjas
Que a gente pegava na feira.
No jantar um ovo frito
Novamente repartido
Com feijão e um pouco de arroz.

Bons tempos em que a lata d’água
Era diariamente transportada
Morro abaixo, morro acima.
Minha mãe lavando roupa
Para por os filhos na escola.
Os filhos no colegial,
Minha mãe sem saber ler.

Bons tempos que na verdade
Só despertam a saudade
Do meu pai contando histórias
Sobre os imensos cafezais
Do velho Odilon Milagres
E suas façanhas juvenis
Nos bailes lá do sertão,
O acordeão e as namoradas
Espalhadas nas cidades.

------------------

Hoje a vida é menos pungente.
Pouco mudou, mas estamos
Prestes a crer no futuro.
E se mudou alguma coisa,
Mudou a família unida
Na hora de adormecer,
Onde minha mãe obrigava
Todo mundo ao padre nosso,
Rezando a Ave Maria
Por tantas barrigas vazias.


----------------


Bons tempos que de lembrar
Pontadas sinto no peito
E me esqueço quando sinto
Vontade de ser feliz.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 65 e 66.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 67)


VOCÊ SABE COM QUEM...?

A mulher do coronel pensa que
É coronel e o filho do coronel
Pensa que é coronel e a copeira
Do coronel pensa que é coronel
E o jardineiro do coronel pensa
Que é coronel e o chofer do coronel
Pensa que é coronel e o amigo
Do coronel pensa que é coronel
E o acessor do coronel pensa que é
Coronel e o segurança do coronel
Pensa que é coronel é o soldado que
Presta continência ao coronel
Pensa que é coronel e o coronel
Pensa que é general.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 67.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 68)




TRIÂNGULO AMOROSO

Ou uma, ou outra.
Seno ou cosseno afetivo,
Hipotenusa indecisa.

Uma e outra.
Tangente emaranhado de órgãos.
Adjacente sobre o oposto,
Ambos sobre a hipotenusa.

Nem uma, nem outra.
Catetos originando retângulos,
Circunferências, pentágonos.
Hipotenusa isolada.
O amor só tem dois lados.


(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 68.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 69 e 70)




BATALHA

Minha cabeça
Absoluta
Luta
Com a palavra,
lavra
Hipóteses,
Teses, tosas em
Escrupulosa
Lousa
De Houaiss,
Ais
Fomentando
(ando
Em linha reta)
arestas,
Pseudo-termo
Ermo
Universo,
Verso
Concreto dia
Leto
Abstrato,
Lesto
Contato,
Tato
Aceso da poesia.


-------------------------------------------



II
Para ser
Concreto
Basta fazer
Crer
Que não é
Abstrato
Nem Ter flor
No teto
Dos seus
Desacatos
Nem Ter
Sutileza
Na sua agres-
São
Basta ter
Visão
Para o nada
Ver
Ter poder
É ter
Isenção
Do ób-
Vio
Semear
O ócio
Por onde
Versejar
Praguejar
O longe
Sem nunca
Ir lá.



(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 69 e 70.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 71)




O ANJO MORTO
À Conceição e Rodrigo

A mãe acalanta o filho
Num berço de desprazer,
Concentrando no menino
O orgulho de ser mulher.

Se o pequeno chora, a mãe
(no frio daquele leito)
Lhe cede o colo, o canto,
A voz amiga, o peito.

Enquanto esperam soturnos
A providência divina,
O pai por certo perambula
Em ignorada esquina.

A mulher amamenta o filho
Crendo que o choro é de fome,
Porém dentro do menino
Há uma dor que não tem nome.

A mãe entra em desespero
Com o choro da criança.
Falta fubá pro mingau,
Falta razão pra esperança.

Por fim o filho adormece,
Enquanto a mulher cantarola:
Quem sabe um dia ele cresce?
Quem sabe vai à escola?

A mãe embala o anjo
Crendo que ele está vivo,
Sem saber que ele dorme
O sono definitivo.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 71.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 72)


UNIVERSO / VERSO

No centro de tudo no centro de tudo no centro de tudo
No centro de tudo no centro de tudo no centro de tudo
No centro de tudo no centro de tudo no centro de tudo
No centro de tudo ESTOU EU no centro de tudo
No centro de tudo no centro de tudo no centro de tudo
No centro de tudo no centro de tudo no centro de tudo
No centro de tudo no centro de tudo no centro de tudo

Trabalhar o verbo
Ver brotar o eterno
Mar ermo
Flor fosca
Dor tosca
Ver escrever ver escrever
Labutar o verso
Dolorido espesso
Desmedido denso
O poeta busca
O lado do espelho
Ainda não ocupado

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 72.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 73 a 78)




DIÁLOGO COM O POEMA

Poesia, és o meu ópio.
Em ti me entorpeço,
Me mereço, me excedo,
Resmungando coisas de que tenho medo,
Inventando símbolos que nunca existiram,
Transpondo limites da minha condição.

Poesia, és minha perdição.
Em ti sou rendido,
Me agrido, me nego perdão,
Confessando bichos do fundo da alma,
Visitando infernos ao redor
Do meu paraíso que pincelo débil.

Poesia, és o meu ardil.
Em ti me guarneço,
Fora de ti sou fraco, feio, frio,
Sem esperanças, sem quintessências.
Desço ao túmulo da dura existência
Até que desperte o canto de Cecília.

Poesia, és o meu testamento.
Em ti me confesso,
Me ensoberbeço, me perpetuo
Nas construções patéticas, assintáticas, herméticas,
Onde reina meu verbo e bebo do meu sangue
Desperdiçado ao longo da minha oração.
__________________________


II

Meus poemas são intervalos
Entre uma dor e outra
No instante em que me deparo
Com tantas chagas abertas
E me comparo com os outros
Vermes fugindo do esgoto.

Me firo, paro, me inspiro
E em versos me readquiro
Senhor dos trovões e do vento.
Tudo que a alguns instantes
Era inferno absoluto
Não passa agora de lamento
Apreciado por minhas mãos
Correndo papel à fora.

A vida brotando da dor
Que pensava ser a vida
Mas não era vida, era dor
E fez-se vida ao revelar-se
Nas minhas freqüentes insônias.
Eis o mal remediado
Na eternidade da escrita.


___________________________________



III

Não era desta forma
Que eu queria te compor,
Poema que agora foge,
Talvez fosse mais sentido
E um pouco mais erudito.
Não tão assim sem nexo
Sem sexo sem eixo
Sem rima e remelexo.

Tento te escrever
Enquanto me disperso
E o guarda perambula rondando a rua
E máquinas trabalham na impressão do jornal
E máquinas trabalham na fabricação do pão
E eu, homem, não sou máquina,
Não consigo te compor
Pois luto com o sono
E a máquina de escrever
E imagens varam a noite me perseguindo.

Mas dorme em paz, meu poema,
Que amanhã eu te desperto.
Talvez até esqueça que queria te compor
E os mesmos vocábulos não me permitam mais
Te escrever novamente
E deixo para outro dia.
Assim vou te adiando até me esquecer
Que Deus me fez poeta
E estou entregue às traças.
______________________________

IV

Não me interrompa, poema,
Devido aos gritos na noite.
Não paro porque o cigarro
Me chama ao último trago.
Não paro para celebrar-te,
Não paro para suicidar-me.
Não paro, não paro,
Não paro. Persisto mais
No feito das palavras.

Não mate o seu estrambote
Com golpes da mão inútil
Que quer manusear outras coisas
Que não seja tua pena.

Enquanto a música toca
O poema se desloca
Rua abaixo, mundo à fora.
Capto-o com precisão
Sem dar trégua à minha luta,
Sem distrair-me com as mulheres
Que passam por minha janela,
Sem permitir que o sono
Fale mais alto que o Dom.
Dom down, Dom down.
Mas não me proíbas, poema,
De concluir teu destino.

______________________________

V

As palavras surgem
Em forma de lampejo.
Um termo é um relâmpago
Um verso é um clarão
E de poesia em punho
Eis o rei do trovão.

As palavras agonizam
No silêncio do olhar
Que tudo sabe, tudo vê,
Que tudo crê
Mas não materializa
Sua linguagem exercida.
Palavra não escrita
É palavra sem vida.

Que não nos ameace
Este silêncio amargo
De ter o que dizer
Sem encontrar palavras.
Nossa palavra muda,
Nosso poder castrado.



_________________________


VI

Estou sempre revendo crases
Sem saber o porquê
Estou sempre rescrevendo verbos
Sem saber pra quê
Estou sempre visitando o Aurélio
Sem saber por quê.

Mas a poesia
Brota todavia
Tal qual flor estúpida
Bela e derradeira
A cada novo dia.

E de hipérboles e metáforas,
Centomatopéias,
(Valei-me, Dorotéia!)
Vou me dando armas,
Discursos e calma
Na luta contra o vento.

Na luta com as palavras
Lavradas, vãs,
Saúdo as manhãs
E desperto as madrugadas
Sem saber que fujo
Do meu poema cujo
(Ou seria sujo?)
Único objetivo
É manter-me vivo.
Enquanto exploro a língua
Beijando a poesia,
Sobrevivo à míngua
Sem dinheiro pra vela
Que ilumina meu breu,
Sem vela pra navegar
Pelo mar Egeu.

Não sei se na verdade
Preciso navegar
Ou desvendar o mar
Na mão côncava
Sobre o meu ouvido,
Nos pungentes gemidos
Dos mortos nas enchentes.

Estou sempre conversando
Com os aedos idos
E doravante outros vates
Conversarão comigo.
E por que
Os porquês?
Porque
O verbo
A crase
Quase
Não farão sentido.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 73 a 78.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 80)


JURAS DE AMOR NO PAPEL

A mulher olha da janela
De dentro da casa amarela,
Escrava do senhor que disse a ela :
Você vai se libertar!

Moldaram anéis de ouro,
Dois corpos livres do agouro.
Onde estão nossos tesouros
Que o papel nos prometia?

Cadê o amor fiel e forte
Que duraria até a morte?
O seu amor que me conforte,
Assinado neste juramento.

Serei seu até a morte
Ou até que morra o amor.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 80.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 81)







SINCRONIA

Calo-me para te ouvir,
Falo para que me ouças
E me traduzas.
Imito o seu passo
No meu compasso.
Encaixo o meu braço
No seu abraço,
Sua sombra
Na minha imagem,
Visagem
No meu sentido.
Marchemos juntos
Na mesma ordem unida.
Cálice
Na minha tentação.
Corpo dominando corpo,
Mão alternando mão.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 81.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 82)


A FOME

O rato tem fome
De queijo e o gato
Tem fome de rato.
O boi tem fome
De pasto e o homem
Tem fome de boi.
O homem tem fome
De boi e o diabo
Tem fome de homem.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 82.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 83 e 84)


VITÓRIA É MEU CORPO TODO

Aperfeiçôo minha fala,
Retraduzo meus escritos.
O talento é irretocável,
O absurdo é irrepreensível e falho
E ora eu me espalho
Aos quatro cantos da cidade.

Pedaços das minhas vísceras
Exumem-se na Praça Oito.
Meus pés percorrem afoitos
A escadaria Maria Ortiz,
Meu olho alcança feliz
O topo do Palas Center
E de lá coordena o resto
Dos meus membros perambulando
As frestas da cidade sol.

Minha boca na Catedral
Cantando dim-Dom, Dom-dim,
Meu nariz na Vila Rubim
Antecipando a explosão
Fareja gente e peixe.

Meu ouvido na Assembléia,
Entre o povo e a alcatéia,
Envia aos outros sentidos
Discussões e apelos urbanos
De meus capixabas irmãos.
Minhas mãos, sólidas mãos,
Tateiam a tez de Carmélia,
De Carlos Gomes, de Glória,
De Elmo Elton, Rubem Braga
E Fafi nas horas vagas.
Meu corpo em dispersão merencória
Reorganiza Vitória
E não dá espaço ao sonho
Que dissipa meus primórdios.
Eu sou a nova cidade:
Viola, violão, violência e clavicórdio,
Rimando a palavra saudade
Coma intelectualidade dos bares.
Subo morro, desço vivo
Porque o batuque também me embala.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 83 e 84.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 85)


POEMA CONCRETO DOS MENINOS NO SHOPPING


Fantasia
Fanta
Azia
Coca Cola
Coca barata
Cola em lata
Games, bate bola
Música eletrônica
Era nipônica
Falas neo-americanas
Grifes bacanas
Saques on line
Poses
Designes
Pais comportados
Filhos imagens
Consumindo discos
Burgues. Bobagens
Até que o teto
Do shopping caia
Sobre sua filosofia
Niilista
E o futuro
Se perca de vista.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 85.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 86)


PRELÚDIO A UM MENINO

Cantem os anjos, dobrem os sinos,
Pois nasceu mais um menino,
Desses que sobem no trono
Para ser senhor do destino
De outros meninos submissos
Que negam-se ao compromisso
De sonhar e moldar o futuro,
Sobrepujando qualquer muro
Que separa coração e mente.

Cante alegre toda gente
Que o novo menino traz
O coração cheio de paz
E a galhardia conseqüente
De uma nova geração.
Dê o sol um novo clarão
Às trilhas destes menino.

As beatas entoem hinos
Pedindo ao senhor Jesus
Alegria e saber divino
Ao peito recém nascido.
Abram-se todos os ouvidos
E apreciem a melodia
Que orgulhosa anuncia
A chegada deste menino.
Dobrem os sinos, cantem os anjos,
Os poetas toquem banjo,
Pois nasceu mais um menino.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 86.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 87)

SETE POEMAS PARA LUSITÂNIA

CANTIGA DE ALÉM-MAR

Lusitânia não é nome de flor,
Mas é flor e dos seus espinhos sabe
Quem a cultiva e dela extrai aroma
De embalsamar feridas, cessar dor.

Lusitânia não é nome de mar,
Mas é mar e protela seus marujos,
(Filhos, poetas, ambos sonhadores)
À terras que inda hão de conquistar.

Lusitânia é nome de cidade,
Mas não é cidade. Quem a habita
Sabe que seu refúgio, estreito antro,
Resguarda um mundo de felicidade.

Lusitânia, no esforço deste ofício
De eternizar aquilo que é fóssil
E transformar pedra em escultura,
Cantar-te ficou ainda mais difícil.

Não deixo de cantar por falta de destreza
Ou ausência do nobre sentimento,
Mas o sol enciumado com sua formosura
Não nos deixa cantar sua realeza.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 87.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 88 e 89)


BALADA LUSITÂNICA

Ingênuo poeta que sou,
Não sei se vou me guardar
Para o dia em que tudo será
Meu quarto de breu e solidão
E consigas assim, Lusitânia,
Abrir meus olhos com teus olhos
E desligar minha escuridão.

Lusitânia esquecida que és,
Não sei se você recorda
De alguma infância perdida
E eu era seu anjo da guarda.
Talvez nem anjo nem nada,
Mas eu rebusco a ficção
Para te encontrar aprisionada
Em minha lusitânica canção.

Que eu exerça meu direito
De admirar teus defeitos
E descansar por instantes
Meu peito em teu peito arfante.
Deixa, Lusitânia, que eu leia
O que o teu olhar não diz,
Pode ser que eu me enganando
Adormeça mais feliz.

Minha armadura insegura
Deixa que eu vista outra vez,
Meu cinzel casmurro afiado
Dando forma à timidez.
Mas, cavaleiro vicentino,
Minha timidez não se engana
Com o canto apaixonado
Das tragédias shakesperianas.
--------
Não me peças que eu te escreva,
Não me peças que eu te cante,
Pois eu já sinto teu rastro
Sem que me implores doravante.
Não peças, Lusitânia, no entanto
Para minha voz emudecer;
É ordem do meu desespero:
Te louvar ou enlouquecer.

Mas se enlouqueço te louvo,
Se te louvo, enlouqueço
E mendigo no chão as migalhas
Do teu impagável apreço.
Eu que já estava de partida
À alguma cidade futura,
Eis que surges e retorno
A tatear-te às escuras.

Já não sei se és um nome
Fictício ou se és real,
Mas que maestria insistente
Domina meu canto passional.
Que aperto sinto no peito
Agora que te versejo,
Que ânsia avassaladora
Me é dada pelo teu beijo.

Que beijo é esse que cito,
Se não sei dos seus contornos?
Meu canto é sua anatomia,
Minha poesia é seu adorno.
Agora noto que foges
E teu vulto vai me abalando,
Teu aceno é voto de espera.
Te esperarei até quando?

Lusitânia, que espectral mão
É essa que segura tua mão?

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 88 e 89.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 90)


LUSITÂNIA CUBISTA / FUTURISTA / SEI LÁ
(PABLO QUE TRACE SEU ESTILO)


Admiro que seu corpo
Seu corpo tem contornos
Como Les Demoiselles
O rosto embora atrofiado
Múltiplos significados
São dados em cada retângulo
Um ângulo em cada nuance
Vestido azul quase negro
Negro como os temores
Acinzentadas cores
Da cabeça de mulher
Mulher sentada erótica
Em gargalhar Gauguin-green-gótica
Autos e baixos retratos
De luz e penumbra Tânia
Musa em place de Itália
A metafísica que me valha
Na valha na palavra dada
Configure a mulher amada
O cansaço lance nos braços
Do escultor a diva reclinada
Não se compõe nada sem Eros
Nada se revela sem Vênus
Três dançarinas, três músicos
Três músicos, todos três lúdicos
Três garças e a tonalidade esparsa
De um azul não mais celeste
Pictórica Lusitânia
Sua boca, sua conjuntura
Sua matizada textura
Conduz minhas mãos ao mármore
E os desejos esculpidos
Ganham formas ambíguas
E o que ainda não se revela
Possui apenas um só sentido.

(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 90.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 91)


LUSITÂNIA NA MEDIDA PERFEITA

Caiba na extensão do braço
Do seu laço,
Do compasso,
Do seu abraço,
Meu cansaço.

Caiba esta minha paixão
Na imensidão
Da sua mão,
Insuposição
De distorção.

Caiba minha voz cansada
Na velada
Boca da amada
Que me guarda,
Minha fada.

Caiba toda minha dor
No rumor
Do seu pudor,
Jura de amor
Em esplendor.

Caiba minha boemia
Na heresia
Da poesia
Do dia a dia
De Luzia.

Caiba a noite com insônia
Na infame
Greve de fome,
Que me ame
Lusitânia.


(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 91.)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 92 e 93)


SOBRE O QUE NÃO FOI DITO

NA ANGÚSTIA PASSIONAL


A cidade ostenta sua religiosidade.
Arte barroca e um anjo ao avesso
Prega o amor aos pervertidos.
Eu sou o anjo, Lusitânia.
Sou que te guarneço.
Ao meu lado adormece um lobo
Manipulando minhas teses e todos os sentidos,
Versejando o que não sinto,
Ocultando o que me é sabido
E o alter ego só queria brindar
Ao amor e nada além do afeto feminino
E de tantas delongas o amor foi paulatino.
Foi paulatino o agouro das crenças de menino
E nada restou ao ego que paulatinamente
Devastasse o assombro da selva juvenil.

O anjo perdeu a idiossincrasia no tormento
Quando buscar queria
A mulher dos seus sonhos, o libertamento
Da utopia,
Desconhecendo que a utopia era o avivamento
Da mulher que lhe luzia.







II

A cidade exibe sua crueldade.
Demônios luzidios dissimulam ansiedades,
Paixões esmorecidas, platonismo ao avesso.
Eu sou o demônio, Lusitânia.
Sou eu que te enlouqueço
E um ser subnutrido me desperta com cantos
Do amor que nunca colhi, nunca plantei no entanto.
O poeta só queria ser terno sem ser eterno,
Mas o conduzo apenas às portas do inferno
E o levo à loucura em paulatinas crises,
Paulatinas utopias, efêmeros concretismos
E não são paulatinos os seus dias felizes.
Ora eu e o poeta rumamos ao abismo.

A morte natural, implora o poeta.
O suicídio matinal, observa o demônio.
E enquanto travam lutas o pesadelo e o sonho,
Mais sedenta ainda sucumbe a alma inquieta,
Quase alheia aos monstros, aos anjos, ao próprio dono
E não há alma feminina que lhe acalante o sono.


(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 92 e 93.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINAS 94 e 95)


CARTA À LUSITÂNIA

Lusitânia, não faça pouco caso
Do amor,
Isso não é lagoa,
É mar.
Não pense que pode
Flutuar
Sobre as águas sem
Ser navegador.

Teria prendido
A lição
Se não tivesse caminhado
Sozinha.
Quem retorna do meio
Do caminho
Amasia-se com
A solidão.

Lusitânia, sou homem crescido
A meu modo,
Aprendi as defesas da infância
E do medo.
Para ser forte me fiz
Aedo.
Fiz do fragmento da palavra
Meu todo.
Minha sombra, mera sobra
Do meu tutor,
Projeta-se sobre toda
Cidade.
Meu corpo minúsculo esconde-se
Atrás da felicidade
De ser o ícone do meu
Próprio andor.

Houve noite em que não contive
O meu lado lobo
Enjaulado em incomum
Lucidez.
Impulsos iracundos cobriram
Minha nudez
Do silêncio e insolente
Verbo ímprobo.

Agrediram-me os símbolos
E os surtos
De falsos mestres, filosofias
De mercado.
Fui primata no sistema
Civilizado,
Mas resisti até o mundo
Adulto.
Os livros pouco me
Ensinaram.
Só me mostraram outros
Homens perversos
E os suicidas fazedores
De versos.

Foram as viagens, Lusitânia,
E os enjôos
De cidades distantes antes
Ignoradas,
Foram as caras diversas
E metamorfoseadas
Que me ensinaram os segredos
Dos vôos
E voar não voei,
Mas naveguei
Até este porto
De onde partem navios
E aedos.


(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Páginas 94 e 95.)

LIVRO "VIDA VIDE VERSO" (PÁGINA 96)




CANTO DESENCANTO

São falsas suas tranças de Rapunzel.
Foste insensível aos contos de fada.
O mar não existe, não existe Ulisses,
Não és Penélope e nem teces nada.

Nem espera há no seu quarto poeirento,
É falso o balouçar do seu cabelo ao vento.
Sua ideologia é falsa e contrária
Ao proletariado burguês e à classe operária.

Que sinal guiará seus sonhos se sonhos não existem
Dentro da conformação universal do seu olho nu?
São falsos seus presságios surrealistas,
Ou não são surrealistas, não são presságios, nem são azuis.

Sua rima é imperfeita, sua repetição é mais imperfeita ainda,
Sua mentira fracassada de celebrar a vida
Limita-se ao seu ego, que é pobre, e aos seus móveis,
Obras de um carpinteiro preguiçoso. Seu choro não comove

Nem ao seu cão carrapatento, último companheiro
A lamber sua face e seu tédio derradeiro.
É falsa a paisagem da sua janela aberta.
O dia ainda subsiste, mas a noite é incerta.

A noite se vier será noite sem misticismo ou lua,
Sem luz dos pescadores perdidos em suas balsas
E ao raiar do dia (mais dia, menos dia)
Perceberás madura que até a dor foi falsa.


(BELLMOND, David. VIDA VIDE VERSO. Editora do autor: Vitória-ES, 1999, Página 96.)