SERVIÇO DE PRETO
A mulher entra no ônibus em Vitória, capital do Espírito Santo. O coletivo está lotado. A viagem é desconfortante, desagradável, a passagem é cara. Uma senhora inconformada com prestação de serviço tão desqualificada, olha pro motorista, um senhor negro, e diz: “Só podia ser serviço de preto”.
Não deu outra. O motorista do ônibus chamou a polícia e a mulher foi autuada em flagrante por prática de racismo. O que mais impressionou a sociedade em geral foi o fato de a mulher racista ser negra, empregada doméstica e com renda mensal de R$ 300,00. Diante da complicação da situação, a senhora argumenta que não poderia ter dito isso porque ela também é preta. A delegada que autuou a agressora disse que o crime de racismo se configura independente da raça de quem o pratica. Concordo em gênero, número e grau com a delegada. Afinal a minha situação social não me dá o direito de zombar daqueles que não se deram bem na vida financeiramente. Minha fé, independente da forma como eu creio em Deus, me permite olhar com desdém para alguém de crença igual ou diferente da minha. Minha sexualidade, hetero ou homossexual, não é passaporte para que eu faça chacotas com quem não é como eu.
Não importa de onde ou de quem venha o escárnio. Se casos como esse acontecem com mais freqüência no nosso cotidiano, as pessoas intolerantes e ignorantes não teriam tanta coragem de se manifestar. Não que eu deseje que o jornal informe diariamente casos de práticas de racismo, mas, se a lei fosse colocada em funcionamento, haveria um temor maior da parte dessas pessoas que ignoram que nosso povo brasileiro é uma mistura de raças, de religião, de cultura. O triste é que a promotora responsável pelo caso ordenou a libertação da senhora negra que agrediu o motorista negro por interpretar que só há crime de racismo quando o agressor se considera superior ao agredido por ser de uma raça considerada superior.
Se isso virar jurisprudência, as leis que versam sobre ofensa, injúria, calúnia, difamação e congêneres podem ser rasgadas porque não valerão mais nada. Se bem que no fundo do meu âmago, eu creio que as leis não valem nada mesmo. As leis foram criadas para beneficiar os amigos dos legisladores e incriminar os seus inimigos. No caso em questão, nem amigo dos legisladores a agressora é já que faz parte da mesma raça sofrida do agressor, assim como esse que vos escreve. Tenho dito que a atitude racista é digna de pena, antes de me irritar, uma vez que a minha atitude preconceituosa denuncia a minha falta de conhecimento de História (ignorância mesmo). Não me ensinaram nem em casa nem na escola que os negros trabalharam de graça por quase 400 anos na construção desse país. Nem me disseram que a Princesa Izabel assinou a Lei Áurea concordando com o fim da escravidão. Eu sou tão estúpido que desconheço o fato de as pessoas da minha raça estarem estudando e trabalhando para provar que negro também pode vencer na vida.
Por outro lado, minha religião também nunca me ensinou que a discriminação é inaceitável por meu Deus. Afinal as religiões só pregam guerras, intolerância e ódio por que eu seria diferente? O que me faz ser mais preconceituoso ainda é a minha ignorância em relação às leis. Existe alguma lei que promova a inibição à pratica de ofensa? Por isso é que sou racista, sexista e de direita. Agora, cá entre nós, dona negra, Serviço de preto? De onde a senhora retirou esse chavão? Do seu serviço mal executado? A culpa do transporte caro não é do motorista negro. A culpa da polícia intransigente e agressiva não é do soldado negro. A culpa da educação de má qualidade não é do professor negro. A culpa das leis mal interpretadas e protecionistas não é do advogado ou do promotor negro. A culpa é de todos nós: negros, brancos, índios, mamelucos, mulatos, pardos, marrons bombons, magentos, cor de burro quando foge, morenos, jambos e queimadinhos de praia. A culpa é de todos nós brasileiros, que não fazemos valer o que está escrito no papel e é nosso por direito. Da próxima vez, xingue a mãe do motorista que a senhora errará menos. O máximo que poderá acontecer é a senhora tomar umas bordoadas nas ventas. Mãe o motorista só tem uma. Mas, quando a senhora ofendeu a raça dele, a senhora ofendeu uma raça inteira, a começar pelos seus ancestrais que vieram lá da África e sofreram para sobreviver nesse país de mestiços.
(Homero Linhares / 23 de março de 2009)